.: Multiplicidade :.

Desde que me conheço por gente, sempre me interessei por assuntos relacionados ao comportamento humano. Quando eu era criança, algumas situações me faziam questionar por que um adulto tinha esse ou aquele pensamento. Exemplo: quando duvidavam que eu era capaz de fazer ou sentir certas coisas, ou quando achavam que eu tinha aprendido de algum lugar algo que eu tinha deduzido sozinho, etc. Eu lembro que minha vó achava impressionante eu montar aqueles quebracabeças de deslizar pecinhas num grid de 3x3 quando eu tinha uns 7 ou 8 anos, antes de entrar na escola primária. Eu montei aquilo com a maior facilidade logo da primeira vez que peguei um deles e era tão óbvio pra mim, como muitas questões relacionadas à psicologia são hoje, por isso me aborreço com alguns livros motivacionais que escrevem sobre coisas que me parecem óbvias demais, por exemplo.


Este livro que acabei de ler fala sobre uma característica nossa que é evidente, mas nem sempre nos damos conta: a nossa multiplicidade. A sociedade nos condiciona a enxergarmos como um só, quando a realidade é que podemos ser muitos. Fiquei surpreso quando comecei a entender melhor como isso funciona na nossa mente e imagino que é essa sensação que muita gente tem quando lê sobre um assunto que ainda não caiu a ficha na cabeça, mas que é óbvio em muitas outras cabeças. Talvez esse assunto de multiplicidade seje óbvio para muita gente, mas não era na minha, até agora. Pelo menos, eu nunca tinha parado para pensar sobre isso. De modo geral, livros que trazem conhecimento sempre são bemvindos, afinal, sempre um ou outro assunto ainda não fez cair a ficha.


Multiplicidade é a nossa capacidade de incorporar diversas personalidades, cada uma com memórias e pontos de vista próprios. Eu estava acostumado com aquela ideia freudiana de id, ego e superego que é limitada perto da multiplicidade.


Quando a gente é criança, desenvolvemos uma série de personalidades pequenas, como a criança irritada, a criança alegre, a criança egoísta, a palhaça, carente e por aí vai. A irritada pode ter nascido por causa do sono, da fome, pela indiferença e vários outros motivos. Conforme crescemos, nossas personalidades vão amadurecendo, algumas vão sendo deixadas para trás, e, dependendo do ambiente, podemos formar uma personalidade maior única, dominante, que é aquela que está ativa em todos os ambientes que a pessoa interage, fruto de uma fusão de diversas personalidades menores semelhantes. Podemos formar maior/menores onde existe uma personalidade maior e outras menores, que aparecem em determinadas situações, como no trabalho, na família, com os amigos, na balada, cada uma se comportando diferente uma da outra. Existem também pessoas com menores múltiplas, sem uma dominante e outras combinações interessantes explicadas no livro.


O curioso, e que eu não tinha percebido, é que cada uma das personalidades possuem seus próprios pacotes de memórias. No caso, memórias e personalidades estão intimamente ligadas. Nossas lembranças chegam mais fortes quando trazemos à consciência o nosso estado mental que viveu aquelas lembranças. Por exemplo, se eu costumo estudar com uma determinada personalidade é mais difícil de colocar em prática o que aprendi com uma personalidade muito diferente: quando eu estou falando em público ou no meio de amigos, por exemplo. Se a personalidade que estudou é calma e segura, uma personalidade nervosa e insegura terá dificuldades em acessar as memórias da calma, o que é bem comum de se ver quando passamos por algum teste ou entrevista. Quando voltamos ao estado calmo, é comum pensar coisas do tipo, "Puxa, porque não disse aquilo?" ou "Como não lembrei disso? Estava na ponta da lingua!".


Pessoas normais têm as memórias compartilhadas entre as diferentes personalidades, embora uma memória seja mais próxima de uma personalidade X do que de uma personalidade Y. Tudo depende de quão semelhante as personalidades são entre si. Se imaginarmos as personalidades se desenvolvendo com diferentes configurações e regiões cerebrais, alguns circuitos estarão acessíveis a outros e alguns bem isolados dos demais. É como nessa última arquitetura que funcionam as pessoas com transtorno de múltiplas personalidades, cada personalidade tem sua própria natureza no cérebro e suas memórias não estão conectadas com as demais.


Também achei curioso o mito do bêbado que se esquece do que fez. O teste era o seguinte: dois grupos fizeram um teste de memória, sendo que na primeira etapa os grupos tinham que memorizar informações. Um estava sóbrio e o outro embriagado. Na próxima etapa, os dois grupos estavam sóbrios e o grupo que estava sóbrio na primeira conseguiu lembrar de mais coisas que o grupo embriagado. Porém, o inverso se aplicava: na segunda etapa, com outro grupo de controle, quando os dois grupos estavam embriagados, o grupo que memorizou as informações embriagados na primeira se deu melhor que os sóbrios, o que sugere que as memórias estão ligadas ao estado em que as pessoas se encontram. Se a gente não se lembra de algo que fizemos quando embriagados, podemos tentar nos embriagar para lembrar da informação, pois o estado traz consigo as lembranças com as quais viveu. Estados muito isolados costumam desenvolver comportamentos diferentes uns dos outros e um próprio conjunto de memórias fechado.


A questão da inconsciência, consciência e da co-consciência também é interessante. Na família de personalidades, existem basicamente 6 grupos: defensoras, controladoras, punitivas, performáticas, relíquias e criativas. Cada grupo tem os seus diversos subgrupos. Algumas pessoas tem a chamada co-consciência, que é semelhante aquela sensação comum em sonhos em que a gente se vê do lado de fora. Na co-consciência, as vozes interiores conversam entre si. Pessoas normais possuem no máximo uma personalidade ativa, o restante fica funcionando só no inconsciente, na forma de intuições, manias e outras manifestações não conscientes, até que tomam conta da gente e passam a ser elas as ativas. Eu sempre tive um pé atrás com a teoria do id e superego influenciando nossa consciência. Ter múltiplas personalidades se manifestando em background faz mais sentido do que apenas duas forças. E são personalidades concretas, que nasceram e foram formadas por algum motivo. Conflitos surgem quando buscam se manifestar, naturalmente todas buscam os seus minutos de atenção e sobrevivência. O nascimento de personalidades está ligado ao ambiente que vivemos, como no ditado "Diga-me com quem andas e te direi quem és".


O livro também traz alguns exercícios interessantes para que possamos identificar nossa família de personalidades, descobrir seus pontos fortes e fracos, seus motivos, origens, enfim, assumir o controle de cada uma delas e descobrir quem a gente realmente é. Assim podemos trabalhar com o nosso time interior. O livro também ensina traçar a roda da personalidade, mapeando nossos diversos eus. Também gostei dos depoimentos de diferentes pessoas relatando sobre algumas de suas histórias, sobre um determinado comportamento delas. São depoimentos bem interessantes.


Dentro de mim identifiquei pelo menos quatro personalidades. Natural, porque sou chamado por três nomes distintos, em diferentes ambientes. Além dos três nomes existe um eu com uma visão mais global e neutra de mim mesmo, ativo quando eu estou sozinho e com meus pensamentos. Sei que tenho diversas micropersonalidades também. Certamente eu detesto matemática, mas tem um lado meu que lida e brinca com números com muita facilidade, tanto é que terminei meu curso de Bacharelado em Ciências de Computação sem ter uma única reprovação. Hoje consigo entender melhor o porquê e também de como eu me dissocio para realizar certas atividades, como programar, por exemplo. Certas coisas vão no automático e eu aprendi a lidar bem com isso.

.: Postar um comentário :.